terça-feira, 2 de agosto de 2011

Desembargadora Neusa Maria Alves da Silva

Uma longa jornada

Revista Raça Brasil

Quando se pensa em um juiz, a imagem mais comum que vem à mente é a de uma pessoa revestida por um impenetrável manto de sisudez - quando não de soberba e até prepotência. Esse estereótipo se esvai em instantes diante da desembargadora Neuza Maria Alves da Silva, a primeira mulher afro-descendente dessa envergadura na Justiça Federal. Pelo contrário. Essa baiana criada no bairro Capelinha do Itororó, em Salvador, não perdeu a simplicidade no trato, o sorriso e a simpatia características do povo soteropolitano.

Desde janeiro de 2005, ela concilia sua amabilidade com o severo rito a que estão submetidos os magistrados do Tribunal da 1ª Região, com sede em Brasília. Nessa corte, o expediente começa cedo e não costuma terminar antes das 20 horas, após a apreciação de variadas petições, processos, habeas corpus entre inúmeras demandas recebidas em grau de recurso pelo tribunal. Somente o gabinete de Neuza Alves tem sob sua guarda cerca de 13 mil processos, provenientes de 14 estados da Federação. 
O que a senhora acha da justiça brasileira?

Impossível falar de um modo geral sobre a Justiça Brasileira, pois em um país de dimensões continentais como o nosso caso, haverá lugares onde ela nem existe, outros onde ela está presente mas não funciona, outros onde funciona mal por motivos políticos, outros por motivos técnicos - mas haverá também lugares onde a Justiça funciona bem porque está bem instalada fisicamente, provida de material humano de qualidade, tecnicamente bem aparelhada, com fiscalização eficiente, além de um corpo de profissionais comprometido com a excelência do serviço que presta. Não quero dizer que exista uma Justiça melhor que a outra - entre a Federal, Trabalhista, Eleitoral, Militar e Estadual - nem que basta dar equipamento de ponta para que tudo corra bem. Não. Há um vasto caminho a ser trilhado na direção do engrandecimento da Justiça como um todo. Ações têm sido praticadas na busca desse ideal, mas têm se revelado ora tímidas, ora equivocadas desde o início, ora desvirtuadas no meio do caminho. Permanece a esperança de um dia vê-la altaneira, independente e, acima de tudo, eficiente. Eu acredito nisso.

Como é trabalhar com justiça num dos paises mais desiguais do mundo?

Trabalho no que eu gosto e, sendo assim, é sempre prazeroso. Tento fazer a diferença dando o melhor dos meus esforços e tenho a consciência tranqüila de que minha parte eu faço. E bem feito. Se cada um de nós cumprir o seu papel - seja qual for a área de atuação - a tendência é melhorar, e muito. Não concordo em vestir capa, portar espada e sair adotando atitudes quixotescas ao argumento de que posso mudar o mundo, mas procuro influenciar para essa mudança, sim, na medida das minhas forças. Não dei causa às desigualdades - antes, sou vítima delas. Se tenho de conviver neste país, que é o único que tenho, faço com que valha a pena, me esmerando no meu trabalho, cumprindo minha cota de responsabilidade.

A sensação que a população tem é de que a justiça no Brasil é para os pobres, mas não porque os proteja e tutele, mas é porque é sobre eles que recai o seu mais dramático rigor. Enquanto alguém cumpre pena por furtar um xampu, quem se locupleta do dinheiro do cidadão fica impune. A senhora concorda com isso?

O erro não está em punir quem furta um objeto de pequeno valor, mas em deixar sem punição adequada quem quer que venha a adotar conduta definida como crime, seja se locupletando ilicitamente do dinheiro do cidadão, seja fazendo vistas grossas a que outros pratiquem essas ações reprováveis ou ainda estimulando que outras pessoas se envolvam em condutas criminosas, ficando à sombra para preservar a própria imagem. Obviamente quem faz opção pela seriedade não pode concordar com isso. Não sou adepta de punir com pena privativa de liberdade todo e qualquer crime, porque sei que a cadeia não conserta ninguém.

Em algumas hipóteses ela é indispensável, mas há meios mais eficientes de se ressarcir o prejuízo causado à sociedade, como a devolução em dobro do valor do alcance, a perda dos direitos políticos, cassação de registro profissional, indenização às vítimas, entre outras formas de fazer mais eficaz a punição aplicada ao transgressor.

Existe uma percepção de que o brasileiro tem pouca noção dos seus direitos. O que pode ser feito para mudar isso?

A afirmação está correta. De fato, o reconhecimento dos direitos e, mais que isso, a consciência da necessidade de seu exercício, passa forçosamente pela noção de cidadania, até porque o conhecimento e a luta pelos direitos são uma das facetas do exercício da cidadania. O problema, então, é que o brasileiro não tem plena noção de sua condição de cidadão e por isso tem dificuldade em reconhecer seus direitos, numa dimensão maior. Em aspectos circunstanciais, específicos, a situação tem melhorado ao longo do tempo, principalmente após o advento do Código de Defesa do Consumidor. O consumidor passou a ser mais exigente e consciente de que não estava mais tão desprotegido - tanto assim que o Poder Judiciário teve de adequar a sua estrutura, criando varas e juizados especializados para atender à demanda das milhares de ações. Muito embora seja um avanço, falta ainda ao brasileiro o atingimento dessa consciência, que tem por pressuposto a disponibilidade de uma educação pública de qualidade que atenda à toda população que dela precisa, permitindo em larga escala que nós tenhamos cidadãos funcional e socialmente alfabetizados.

Infelizmente, ainda não há uma educação pública de qualidade por causa de quem utiliza a ignorância como meio de manutenção do seu status quo.

Fonte:Revista Raça Brasil
Entrevista concedida à Sionei Ricardo Leão


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