terça-feira, 2 de agosto de 2011

Desembargadora Neusa Maria Alves da Silva

A impunidade é uma palavra recorrente no dia-a-dia do brasileiro, que vai perdendo a fé nas instituições.O que a justiça brasileira poderia fazer e não faz para melhorar essa situação?

Essa associação da impunidade com a atuação da Justiça, em regra, é injusta. Isso não significa dizer, obviamente, que a atitude do Poder Judiciário atende ao contento a expectativa da sociedade e do jurisdicionado, até porque a realidade é tão gritante que seria cínico dizer o contrário. Entretanto, a questão da impunidade passa pela avaliação de dois aspectos: a demora da prestação jurisdicional e a resposta dada pelo Poder Judiciário aos casos de repercussão nacional.

O problema da morosidade da Justiça não é de responsabilidade única do Poder Judiciário, como instituição, nem dos seus membros e servidores. Essa lentidão decorre principalmente da infinidade de recursos postos à disposição das partes e da timidez das penas imputadas a quem exerce abusivamente seu direito de recorrer.

Por outro lado, a fixação das penas como conseqüência da prática de determinado delito é atribuição do Poder Legislativo. Por essa razão, o Poder Judiciário não pode ser responsabilizado pela imputação de determinadas penas que tenham se mostrado tíbias.

O que o Poder Judiciário precisa fazer, portanto, é, assumindo a sua parcela de responsabilidade, dar conhecimento à sociedade de que não é ele quem estabelece o rito dos processos, tampouco a conseqüência jurídica dos atos praticados pelas partes.

Qual sua visão das políticas afirmativas, como as cotas para afro-descendentes nas universidades públicas? 

Sou a favor, pois é discriminação positiva. Por ser um rótulo positivo, eu aceito.

Mas é comum  pessoas na sua posição se sentirem receosas em se manifestar favoráveis às cotas...

De fato, há quem fique assim. Muitos acham que podem perder o que conquistaram. No meu caso, penso que só posso perder quando morrer. Isso é muito tranqüilo em minha visão.

Até para ser promovida desembargadora, tive que pedir apoio do Judiciário, do Executivo e do Legislativo.

Mas em momento nenhum eu me imolei. Ao contrário. Fui dizer a eles quem era eu, quando apresentei o currículo, falei de minha vida, mas deixava claro que estava disputando porque merecia. Eu dizia "vossas excelências não estarão fazendo favor nenhum em chegar ao Presidente da República e pedir a minha escolha. Jamais vou envergonhar o vosso pedido". Creio que esse foi o meu diferencial.

A senhora nem precisa dizer, mas é certo que como mulher negra, sofreu e talvez ainda sofra, muitas injustiças ao longo da vida. Como a senhora entende a questão da justiça no dia-a-dia das relações sociais?

Já sofri injustiças, sim. E muitas vezes. No ambiente estudantil, nas relações sociais, no contexto profissional.

Em algumas oportunidades foi de forma explícita, em outras, veladamente. A condição de ser mulher e de ser negra, associada ao fato de ser de origem pobre, sempre esteve presente nessas ocasiões. Minha reação foi - e acredito que sempre será - a de parar para refletir e reagir em seguida, de acordo com a minha reflexão, adotar a atitude mais sensata. Às vezes é preciso recuar um passo, para avançar vários, com segurança e objetividade.

É preciso não perder a capacidade de sentir e demonstrar indignação, mas o sucesso da reação está diretamente ligado à racionalidade da conduta que vier a ser adotada

Por mais que a justiça procure ser cega, ela é feita por seres humanos. Nesse caso ser mulher e ser negra muda alguma coisa na desembargadora Neuza Maria?

Penso que sim. Direito é vida e sua aplicação prática é exigida a partir dos diversos atos de convivência em todas as esferas, como na família, na escola, no trabalho, na religião, no lazer, entre tantos outros prismas pelos quais pode ser visto.

É razoável entender que o julgador, como ser humano, é resultado dessas diversas vivências. Quero crer que as pessoas que, como eu, passaram por dificuldades de toda ordem, que conseguiram tomá-las como incentivo e que buscaram o equilíbrio reúnem melhores condições de cumprir seu papel na magistratura com maior sensibilidade, mas sem sentimentalismos exagerados, com maior firmeza, mas sem arrogância, com maior competência, mas sem ser pretensioso.  

Fonte:  Revista Raça Brasil, entrevista concedida à Sionei Ricardo Leão

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